Fonte: Brasil de Fato
Por Gabriel Maia Salgado*
Grupos religiosos conservadores têm pressionado para que os Planos de Educação de estados e municípios de todo o país não contenham qualquer meta ou estratégia que promova a igualdade de gênero em seus textos. Ao analisar a ação destes setores e a importância de atividades relacionadas a esta temática, a secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a pastora Romi Bencke classifica como essencial a abordagem destas questões para o combate à violência e contra a exclusão escolar.
Documentos que devem ser construídos de maneira participativa e democrática, os Planos Municipais e Estaduais de Educação devem ser elaborados até junho deste ano, contendo metas e estratégias para garantir o direito à educação para a população de uma determinada cidade ou estado nos próximos dez anos.
“É lamentável e, ao mesmo tempo, assustador, que a violência contra a mulher não gere indignação. São casos e mais casos todos os dias e fica por isso mesmo. A mudança de cultura é gradativa, mas precisamos começar a falar abertamente sobre estes temas para substituirmos uma concepção de mundo patriarcal por uma visão de mundo diversificada. Essa conversa é necessária em todos os espaços, especialmente nas escolas”, destaca a pastora.
Sobre a ação dos grupos que têm feito pressão sistemática para que a palavra “gênero” sequer esteja mencionada nos Planos, Romi Bencke acredita que eles possuam dificuldade em aceitar as transformações da sociedade. “Há uma dificuldade em aceitar que nos tempos de hoje não caiba mais à religião normatizar a vida das pessoas. Lidar com as autonomias é difícil, mas as religiões precisam aceitar isso. A liberdade humana é um valor que também se relaciona com a fé”, defende.
Leia abaixo a entrevista completa com a pastora e Secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), Romi Bencke:]
A abordagem de questões relacionadas ao gênero tem gerado polêmica na construção dos Planos de Educação em diferentes cidades do país. Como você avalia a abordagem destas temáticas nos Planos de Educação e, também, nas escolas?
A abordagem das questões relacionadas a gênero é essencial. É importante que educadores e educadoras sejam preparadas para abordar esses temas de forma madura e inclusiva.
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O Brasil é um país em que a violência está inserida no cotidiano e um número significativo de casos tem motivação sexista. Esse é o caso da violência contra a mulher e a população LGBTTs. É lamentável e, ao mesmo tempo, assustador, que a violência contra a mulher não gere indignação. São casos e mais casos todos os dias e fica por isso mesmo.
É necessária uma mudança cultural e a educação tem um papel estratégico nisso. A mudança de cultura é gradativa, mas precisamos começar a falar abertamente sobre estes temas para substituirmos uma concepção de mundo patriarcal por uma visão de mundo diversificada. Essa conversa é necessária em todos os espaços, especialmente nas escolas. Em nosso país prevalecem valores tradicionais que tendem a reforçar relações de poder desiguais e opressivas. Problematizar tais valores é também uma tarefa da educação.
Como realizar atividades realizadas à questão de gênero pode influenciar na garantia do direito à educação?
A partir do momento em que o tema da diversidade for efetivamente trabalhado nas escolas, teremos dado passos concretos para a mudança de percepção de mundo. Para isso, podemos olhar para os valores presentes em décadas anteriores e compará-los com a atualidade de maneira que as pessoas vejam que a história é dinâmica. Nos últimos anos, o Brasil deu passos importantes para a superação da desigualdade econômica e precisamos agora dar outros para a superação de todas as formas de preconceito e discriminação.
Há muitas histórias de alunos que não querem mais ir à escola porque sofrem discriminações as mais variadas. É uma forma de evasão escolar que precisa ser superada. A escola precisa ser um espaço de exercício de democracia e convívio com o diferente. Um lugar aberto, que promova discussões aprofundadas sobre todos os temas. Isso é formar cidadãos e cidadãs.
Como pastora, como você avalia a posição dos grupos religiosos que têm se posicionado contra a abordagem das questões de gênero no ambiente escolar?
Uma das funções da religião é a preservação de tradições, no entanto, essa tarefa precisa ser feita em diálogo com o contexto histórico e social no qual se vive. Os papéis de gênero mudaram de forma muito forte e rápida. Logo, mudam também os papéis sociais dos homens e mulheres.
Os modelos de família de hoje são diferentes dos modelos de família do início do século XX, por exemplo. Não podemos mais dizer o que é um modelo de família aceitável ou não aceitável. Se em uma determinada família há amor, respeito, carinho e diálogo, pode-se dizer que ali existe uma família, independentemente ser forem dois homens, duas mulheres, uma mulher ou um homem. Agora, se em uma família tivermos desrespeito, agressões, dominação de poder, etc, pode-se dizer que ali temos uma família com problemas, independentemente de quem a compõe. É isso que a religião deveria avaliar e contribuir positivamente para transformar: as relações humanas. Contribuir positivamente para uma cultura de paz.
Nos grupos que atuam fortemente contra os temas de gênero percebo que há uma resistência em aceitar as transformações que ocorreram na sociedade e, em muitas delas, de maneira rápida. As mudanças desestabilizam. Para reencontrar a segurança, para manter o mundo organizado, é necessário apegar-se às concepções que causam sensação de segurança. Outra compreensão é a de que há uma dificuldade em aceitar que nos tempos de hoje não cabe mais à religião normatizar a vida das pessoas. Lidar com as autonomias é difícil, mas as religiões precisam aceitar isso. A liberdade humana é um valor que também se relaciona com a fé.
Muitos destes grupos criticam o que chamam de “ideologia de gênero”. O que este termo significa?
Ideologia é um conjunto de crenças e ideias que constituem a visão de mundo de um determinado grupo ou classe social. As práticas e valores sociais podem corresponder a uma ideologia, mas não são eles próprios uma ideologia. A ideologia é sempre uma representação social do mundo em um sentido mais amplo.
Assim, as relações de gênero e as suas representações sociais podem expressar parte de uma determinada ideologia. O que temos historicamente observado é que valores patriarcais têm fundamentado as relações de gênero. Por sua vez, tais valores pertencem a uma ideologia dominante.
Quando grupos propõe o debate sobre as relações de gênero e reivindicam mudanças estão problematizando uma ideologia que tem dominado e contribuído para relações humanas pautadas na desigualdade de poder entre os gêneros. A problematização das relações de poder é fundamental para que novas relações humanas e sociais sejam forjadas.
*Gabriel Maia Salgado é jornalista da iniciativa De Olho nos Planos