A voz da trabalhadora negra ecoou na tarde desta terça-feira (27) na Câmara de Curitiba com uma mensagem de resistência e reflexão. Ecoou no ‘Canto das três raças’, composição de Clara Nunes interpretada pelo trio Aline Castro Farias, Brinsan N’Tchalá e Janine Matias, ecoou na espiritualidade do candomblé e no soluçar de dor de experiências de vida compartilhadas na reunião pública “Mulheres negras, trabalho e resistência no Município de Curitiba”.
Organizado pelo mandato da Professora Josete (PT) em virtude do mês da Consciência Negra, o evento homenageou mulheres negras com atuação em diversos segmentos da sociedade, debateu mercado de trabalho e a intersecção de diferentes formas de opressão historicamente ligadas, como explicou Juliana Mittelbach, ativista da Rede de Mulheres Negras e da Marcha Mundial das Mulheres. “O mandato da Professora Josete foi muito feliz na escolha deste nome, pois nos contempla por inteiras. Não dá para falar de classe sem falar de raça; não dá para falar de feminismo sem falar do racismo com a mulher negra”, ponderou.
Com atuação no movimento sindical, Juliana apresentou dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconomicos (Dieese) sobre a inserção da mulher negra no mercado de trabalho no Paraná e no Brasil. Entre os dados, o fato das mulheres negras possuírem um rendimento mensal médio 56,2% menor que os homens negros.
Ela destacou que apesar dos 130 anos da abolição da escravatura completados neste ano não houve uma política de reparação histórica aos negros e que eles “foram colocados pra fora sem direito a um espaço”. Como consequência, houve “a marginalização nas periferias [no sentido de estar à margem] e no mercado de trabalho”. Para ela, “só depois de muito tempo do movimento negro se organizando e gritando, as mudanças começaram a aparecer”.
Juliana citou o avanço com políticas públicas como o Bolsa Família, ao qual atende 46,6 milhões de brasileiros, sendo 76% são negros e negras. “Teve muita gente que aproveitou para superar da miséria e isso fez o Brasil sair do mapa da fome. E quem saiu do mapa da fome? Quem passava fome? Os negros e negras”. O Pronatec, programa voltado à capacitação de pessoas de baixa renda para o mercado de trabalho; as cotas nas universidades públicas e a PEC das Empregadas Domésticas, que proporcionou direitos como fundo de garantia e seguro desemprego às trabalhadoras, também foram destacados como conquistas pela militante.
Por outro lado, ela lamentou os retrocessos a partir do golpe de 2016, citando a Lei das Terceirizações e a reforma trabalhista, que precarizaram o mercado de trabalho e reduziram salários. “Boa parte desse trabalho terceirizado é de negros e negras.” Ela acrescentou que dados do IBGE indicam que 8 dos 13 milhões dos desempregados no país são negros e negras e que a mulher negra, além de estar “entre as piores colocações de trabalho, quando vai para casa ainda tem uma divisão de serviços domésticos desigual em relação ao homem”.
Desigualdade
A defensora pública popular Andreia de Lima, presidenta da Usina de Ideias e liderança comunitária do Parolin, trouxe ao debate sua experiência de vida desde a chegada em Curitiba com sete anos de idade. Ela defendeu a luta contra o racismo e a desigualdade e falou sobre sua experiência nas comunidades pobres. “Quando rico quer ‘pirar o cabeção’ ele vai na favela comprar drogas. Mas quando um favelado sai de casa para catar papel na frente de uma mansão, o rico chama a polícia para tirar ele de lá. Peço que tenham respeito pelo favelado. Se for para brigar por todas e todos, me chamem, eu estarei aqui”.
A situação de vulnerabilidade das mulheres negras também foi destacada pela militante. As negras são a maioria em mortes por agressão (68,8% Diagnóstico dos homicídios no Brasil – Ministério da Justiça/2015), tendo duas vezes mais chances de serem assassinadas do que as mulheres brancas (taxa de homicídios por agressão: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre negras – Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da Justiça/2015). “Por isso que sempre destacamos que as vidas negras importam”, comentou.
Espiritualidade
A yalorixá Iyagunã Dalzira Maria Aparecida, de 76 anos, foi uma das presenças mais saudadas no evento. Yá – como é carinhosamente chamada – iniciou os estudos tardiamente, aos 49 anos, cursou superior em Relações Internacionais aos 63 e aos 72 defendeu seu mestrado “Templo religioso, natureza e os avanços tecnológicos: os saberes do candomblé na contemporaneidade”, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Mineira, ela chegou em Curitiba há 46 anos. “A gente vive neste Estado, trabalha neste Estado, paga imposto neste Estado, e tem muito pouca visibilidade. A palavra mais forte é a resistência, que a gente faça de tudo um pouco para sermos reconhecidas nesse Estado e nessa cidade. Tudo é muito difícil para nós, diferente, mas a gente vai com parceiros, parceiras, conseguindo”, comentou Yá, ressaltando o preconceito e a intolerância em relação às religiões de matrizes africanas. “Não somos vistos como pessoas de bem, que contribuem para a sociedade. Poucos entendem a nossa trajetória”, acrescentou.
Resistência surda
A poetisa surda e militante feminista Gabriela Grigolom, promotora popular com formação em Artes Cênicas, contou com o auxílio de um tradutor de libras para expor sua dificuldade de ser inserida no mundo artístico e defendeu maior espaço às pessoas surdas nessa área. “Depois de algumas experiências participando da militância, amigos foram me influenciado e pude participar do movimento negro e da arte de rua.” Segundo ela, quando ia ao teatro “não conseguia se emocionar como as outras pessoas e depois que eu passei a participar percebi que poderia passar toda a essa emoção”, contou Gabriela, que é organizadora do ‘Slam Resistência Surda’. O slam poetry, “batida de poesia” na tradução literal do inglês, é o nome que originou o modelo do evento, popular em várias partes do mundo.
A poetisa queixou-se ainda da dificuldade de comunicação entre as pessoas surdas e prestadores de serviços públicos, como médicos e policiais. Alertou que os surdos precisam conhecer a luta pela igualdade, pois muitos são oprimidos e não se defendem porque, “acham que é normal”. Para ela, as mulheres surdas de alguma forma “precisam ter voz para denunciar o machismo. Como elas vão ligar para o 180 se elas não conseguem falar, gritar, denunciar? É preciso criar mecanismos para elas denunciarem.”
Liberdade de ensinar
Organizadora da reunião, Professora Josete ressaltou que além de prestar homenagens com votos de congratulações às trabalhadoras, o evento teve o objetivo de despertar a reflexão para a realidade da população negra no município. Professora da rede municipal, a parlamentar lembrou da época que era estudante na década de 1970. “Nós aprendemos na escola que a libertação dos escravos foi um ato de bondade da princesa Isabel, porém após passar se formar, passar no concurso e com a reabertura democrática que fui passar a discutir a luta dos negros, saber o que era um quilombo, quem foi Zumbi dos Palmares, quem foi Dandara. Aprendi muito para ajudar as crianças a refletir sobre a luta dos negros e negras. Mas estamos correndo o risco de perder o direito de ensinar isso nas escolas”, alertou a vereadora, manifestando preocupação com propostas que buscam cercear a liberdade de ensino como o projeto Escola sem Partido.
Além das debatedoras, o evento contou com representantes da Secretaria Estadual de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos, do Movimento Evangélico Negro, do Instituto Brasileiro Trans de Educação, da Frente Feminista de Curitiba, Movimento Nacional de População de Rua, Instituto Afrobrasileiro do Paraná, Rede das Mulheres Negras, sindicatos, dentre outros movimentos sociais da cidade.
Homenagens
Ao longo do evento as trabalhadoras negras eram chamadas para receber votos de congratulações e aplausos por serem exemplos de resistência em Curitiba. Confira abaixo a lista de homenageadas.
1. Maria Anatércia da Silva: mora há 60 anos no Parolin. Natural de Lagoa Vermelha (RS). Começou a trabalhar aos 12 anos, como babá, trabalhou também como coletora de recicláveis por mais de 15 anos.
2. Maria Francisca Vitório: nasceu em Minas Gerais, mudou-se ainda jovem para Terra Boa (PR), casou-se aos 19 anos de idade, mãe de 8 filhos, trabalhou na roça durante muitos anos. Ficou viúva aos 39 anos. Terminou de criar seus filhos sozinha, mudou-se para Curitiba. Construiu um barraco, usava lamparina, tirava água do poço. Ajudou os filhos a criar os netos, trabalha e resiste em Curitiba há 60 anos.
3. Tereza Vitória Ignácio: mora há mais de 50 anos no Parolin, natural de Varginha, trabalhou a vida toda como doméstica.
4. Pedrina da Silva: natural de Marialva, trabalhou como doméstica em casas de família, aposentou-se, mas continua trabalhando como diarista, trabalha e resiste em Curitiba há mais de 40 anos.
5. Iracy Paulina da Silva: tem 74 anos, nasceu em São Paulo, na cidade de Presidente Prudente, veio para o Paraná há 43 anos. Começou a trabalhar aos cinco anos de idade acompanhando a mãe na roça. Trabalha com coleta de recicláveis desde que chegou em Curitiba, há mais de 40 anos. Seu principal local de trabalho é o Mercado Municipal. Foi mãe e pai. Teve 10 filhos, 4 meninas e 6 homens, 3 já falecidos.
6. Maria de Lourdes Santana: mora há mais de 40 anos na região do Parolin, natural de São Paulo. Trabalhou como doméstica por mais de 20 anos, atualmente trabalha fazendo marmitex em sua própria residência.
8. Cléo Coelho Almeida: iniciou sua trajetória em Curitiba em 2011. Foi acolhida pela casa de mulheres LGBT em 2016, onde ficou por dois anos até conquistar sua autonomia e independência. É militante do Movimento Nacional da População de Rua. Fez curso de panificação e confeitaria, trabalha em padaria e também realiza serviços como diarista, em casas de família.
9. Maria Lucia de Souza: reside, trabalha e resiste em Curitiba desde 1980. Trabalhou no projeto Kanaambo durante quatro anos na década de 1990, programa de formação de jovens/adolescentes, atuava como formadora em cursos de culinária, panificação e confeitaria.
10. Delcimar Castro Batista: natural de Barra do Corda, Maranhão, ainda criança foi com os pais morar em Brasília. Trabalhou desde a adolescência em diversas atividades, como atendente e frentista. De 1977 até 2017, foi servidora da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Delcimar é mãe de duas filhas.
11 Jairce Maria Fernandes da Silva: natural de Cerro Azul (PR). Veio para Curitiba em 1957. Trabalha desde os 11 anos de idade, começou como babá, sonhava ser professora. Trabalhou 19 anos no comércio como vendedora e no ano de 1992 foi nomeada através de concurso público auxiliar de serviços escolares na Secretaria Municipal de Educação de Curitiba, onde ficou até se aposentar, em 2005. Mãe de três filhos, hoje formados: uma advogada, uma pedagoga e um jornalista.
12. Claudia Maria Ferreira, nascida em Curitiba, mãe de 5 filhos , professora de educação especial na área de educação infantil. Filiada à Rede de Mulheres Negras do Paraná, militante do movimento negro desde 1987.
13. Ângela Maria da Silva, formada em Pedagogia, especialista em Educação Étnico Racial e Mídias Integradas na Educação. Mora em Curitiba há 29 anos e trabalha com educação há 13 anos.
14. Geisa Costa: atriz, produtora, contadora de histórias. Terapeuta holística. Iniciou no teatro com o curso livre da Secretaria de Cultura de Londrina, em 1983. Foi atriz coadjuvante no longa metragem Besouro, produção que recebeu várias indicações para prêmios. Está em cartaz no Teatro Zé Maria com o Musical Primavera Leste.
5. Mirna Mary Silva Batista: natural de Curitiba, graduada em Administração de Empresas, cursa especialização em Gestão Pública pela UEPG e faz residência técnica na Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
16. Nicole de Oliveira: 19 anos, representada por Stephanie de Souza Xavier, natural de Curitiba. Estudante de licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Paraná, completou o ensino médio no Instituto Federal do Paraná em Curitiba, onde teve o primeiro contato com o movimento negro e segue lutando por ele até hoje.
17. Gabriela de Araujo: estudante de Medicina da Faculdade Pequeno Príncipe com bolsa pelo ProUni, criadora do Centro Acadêmico de Medicina Maria Estrella, participante da criação do grupo de trabalho em saúde da população negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
18. Lúcia José Francisco: reside em Curitiba há três anos, natural de São Paulo (SP), trabalha desde os 18 anos, já trabalhou como auxiliar de limpeza, copeira e com manutenção. Tem um casal de filhos e uma neta. Trabalha na Higi Serv desde que chegou em Curitiba.
19. Giorgia Prates: nasceu e se criou na periferia de São Paulo, capital. Formada em Jornalismo e Fotografia, trabalha como fotojornalista desde 2016 e é colaboradora do jornal Brasil de Fato e da mídia CWB Resiste. Atualmente estuda Pedagogia na Universidade Federal do Paraná e atua como fotojornalista e documentarista dos movimentos sociais. Trabalha desde os 16 anos de idade e resiste em Curitiba há quatro anos.
Foto: Chico Camargo/CMC
Confira mais fotos do evento > https://bit.ly/2zx2hLT
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