Somente nos últimos 40 dias, Curitiba registrou quatro mortes por causa do FRIO, de pessoas que viviam em situação de rua. Diante da falta de Políticas Públicas e da intervenção da retirada de pertences, como forma de forçar o encaminhamento pra um serviço insuficiente que não dá conta de atender toda a demanda atual da população em situação de rua, o Movimento Nacional de População de Rua – Paraná (MNPR-PR), organizará nesta terça-feira, dia 26 de junho, uma vigília em parceria com a sociedade civil, com atos em favor dessa população, com atividades artísticas e ecumênicas.

Confira abaixo a Carta aberta à população de Curitiba, escrita pelas entidades que apoiam a vigília.
O QUE MATA NÃO É O FRIO, MAS A FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

Frente as atuais manifestações da Prefeitura Municipal de Curitiba acerca do atendimento destinado à população em situação de rua e os casos de pessoas que morreram nas ruas nas últimas semanas, vimos a público manifestar um posicionamento coletivo na tentativa de explicitar os problemas atuais e contribuir no debate público sobre os desafios do atendimento a este segmento social.

1. NÚMERO DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM CURITIBA.

Apesar de não existir um acompanhamento sistemático do número de pessoas em situação de rua em Curitiba, no ano de 2009 foi publicada pesquisa que identificou o número de 2776 pessoas em situação de rua na cidade. Após um considerável lapso temporal de 7 anos, nova pesquisa foi divulgada no ano de 2016, contabilizando 1715 pessoas em situação de rua em Curitiba. Dentre elas, foram identificadas 1.133 pessoas nas ruas e espaços públicos e outras 582 encontravam-se em Unidades de Acolhimento Institucional.
Dadas as particularidades do segmento social e a necessidade de perceber que a subnotificação numérica é um aspecto metodológico inevitável nos levantamentos censitários a respeito da população em situação de rua, percebemos que entre os anos de 2009 e 2016, o número de pessoas em situação de rua cresceu vertiginosamente, a olhos nus. Acreditamos que dificilmente alguém seria capaz de dizer que o número de pessoas em situação de rua diminuiu nos últimos anos. Ao contrário, trata-se de uma evidência que qualquer morador da cidade percebe.

2. NÚMERO DE PESSOAS VS NÚMERO DE VAGAS

Durante os meses de inverno, a prefeitura aumenta o número de Unidades de Acolhimento Institucional, bem como produz uma força tarefa de abordagem social nas ruas, na tentativa de evitar o risco de mortes ocasionadas pela exposição às baixas temperaturas. De acordo com a FAS (Fundação de Ação Social), durante a operação inverno, a cidade passou a contar com 1200 vagas de acolhimento para pessoas em situação de rua
Mesmo se considerarmos o menor número contabilizado em pesquisa oficial, que afirma a existência de 1715 pessoas em situação de rua na cidade, percebe-se que a capacidade de atendimento é menor do que a demanda. Se considerarmos os números divulgados na pesquisa de 2009 (2776 pessoas em situação de rua), a disparidade se torna muito mais alarmante, chegando a menos da metade do número total.

3. A VULNERABILIDADE E A MORTE NAS RUAS

• 11 de maio de 2018: jovem de 25 anos foi encontrado morto no bairro Sítio Cercado, em frente a uma Unidade de Pronto-Atendimento. Um vizinho interagiu com ele e lhe deu uma coberta, mas durante a manhã os transeuntes identificaram que ele não esboçava qualquer reação e foi atestado seu falecimento ;
• 20 de maio de 2018: homem não identificado, com aproximadamente 45 anos, sem indícios de dependência química, vestindo apenas camiseta e com um cobertor fino, foi encontrado morto por um grupo de jovens que entregavam alimentação na praça 19 de dezembro, centro da cidade, em uma noite (madrugada) de domingo em que os termômetros marcavam 7ºC, com sensação térmica inferior;
• 09 de junho de 2018: Samuel Pereira de Souza, 47 anos, foi encontrado morto no começo da tarde, ao lado da porta principal da Catedral de Curitiba, na Praça Tiradentes;
• 18 de junho de 2018: Oracildo Lisbão, conhecido como Seu Orácio, 56 anos, foi encontrado morto por comerciantes no bairro Batel. Seu Orácio era conhecido dos vizinhos e comerciantes pois viveu nas ruas do Batel durante os últimos 15 anos. Em virtude do seu hábito de levantar cedo pela manhã, o segurança de uma empresa notou que ele ainda estava deitado e acionou o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU), que constatou a morte de Seu Orácio.

Frente às as mortes que passam a se acumular durante o inverno, a postura institucional da Prefeitura Municipal de Curitiba tem sido, no mínimo, infeliz e cruel. Após o segundo caso (20 de maio), a prefeitura se manifestou frente ao laudo da Polícia Científica do Paraná, que negou a possibilidade das mortes terem sido em virtude de hipotermia, afirmando que o primeiro caso foi em decorrência de um edema e o outro de enfarte.

A mensagem passada pela mídia foi confusa, como se o laudo pericial respondesse aos questionamentos daqueles que estão expostos às baixas temperaturas e demais intempéries, à total fragilidade de sua segurança alimentar, exposição pública, vulnerabilidade das condições de segurança, dentre todos os outros aspectos que brutalizam a população em situação de rua.

Após a morte de Samuel, no dia 09 de junho de 2018, o prefeito Rafael Greca se manifestou nas redes sociais com uma elaboração absolutamente infeliz. Comparou o caso de Samuel, que segundo o prefeito foi atendido pela FAS pouco antes de ser achado morto (a data não foi precisa), com outra situação em que uma pessoa recebeu atendimento da CAR (Casa da Acolhida e do Regresso) e foi encaminhada de volta a sua cidade de origem.
Em resumo, o que o prefeito afirmou nas entrelinhas é que Samuel morreu em virtude de não querer ser atendido pela FAS. Tal afirmação soa correta para quem não entende ou conhece os serviços de Acolhimento Institucional. No entanto, o que o prefeito omite para a população é que tais Unidades atendem apenas durante o pernoite e que, após o acolhimento noturno, a maior parte das pessoas não tem para onde ir e voltam logo cedo, durante a manhã, para o espaço público.

4. POR QUE AS PESSOAS NEGAM O ATENDIMENTO DA FAS?

A Prefeitura Municipal de Curitiba adotou uma posição muito cômoda frente às mortes que se acumulam nas ruas. Afirmam que as pessoas não querem ser atendidas e criminalizam as pessoas em situação de rua como se elas fossem as próprias culpadas pelas situações que passam. Mas omitem a situação óbvia sobre a falta de vagas, que o serviço destinado às pessoas em situação de rua é provisório, que as pessoas precisam passar a maior parte do dia em filas na tentativa de garantirem o acolhimento, que o prazo de estadia nos acolhimentos é curto e que não possibilita a reorganização da vida das pessoas para uma situação de domicílio permanente, que estes espaços destinados a pessoas adultas são disciplinares, autoritários, coletivos e sem qualquer possibilidade das pessoas exercerem qualquer tipo de privacidade.

Se pensarmos historicamente, a relação da FAS com a população em situação de rua é dramática. Desde o antigo resgate social, espaço superlotado e violador, até as atuais abordagens conjuntas entre FAS, agentes de segurança pública e limpeza pública, que frequentemente subtraem os pertences das pessoas, como cobertores, colchões e inclusive documentos pessoais, com diversas queixas de abordagens truculentas, produziu uma relação de total desconfiança, em que as pessoas negam sistematicamente o atendimento do serviço por uma relação que se constituiu historicamente.

Neste contexto, a Prefeitura Municipal de Curitiba tem a tarefa de restabelecer sua relação com a população em situação de rua. No entanto, mais uma vez, se comporta de forma acomodada e prefere culpar e criminalizar as pessoas em situação de rua ao invés de implementar uma verdadeira reformulação na oferta de seus serviços e equipamentos.

#RuaNãoÉMoradia.

Para a população em situação de rua o espaço público se converteu na última alternativa para sua sobrevivência. Trata-se de pessoas que, pelos mais diversos motivos, perderam as condições de realizarem a manutenção de suas vidas em domicílios permanentes.
Segundo a Prefeitura Municipal de Curitiba, “Rua não é moradia”. Concordamos plenamente com a afirmação. No entanto, se por um lado a rua não é um espaço adequado de moradia, as Unidades de Acolhimento Institucional também não o são. Enquanto sociedade civil organizada, compreendemos com as experiências bem sucedidas ao redor do mundo, que a única forma de impactar positivamente na redução do número de pessoas em situação de rua é com a aplicação de políticas públicas vigorosas de moradia permanente.

A Prefeitura Municipal optou por não escutar as reiteradas sugestões da sociedade civil organizada, apesar das inúmeras tentativas de estabelecer diálogo e proposições em espaços colegiados de participação. De outra forma, preferiram a cômoda posição de repetir insistentemente que a cidade conta com um ótimo serviço e que as pessoas em situação de rua preferem não utilizá-lo.

Não podemos aceitar este posicionamento, visto que, se a política pública não gera adesão das pessoas para quem ela é destinada, é papel dos gestores públicos reformularem tais serviços de modo que eles sejam realmente efetivos e impactem positivamente na vida daqueles que necessitam destes serviços.

A partir desta conjuntura, demandamos:

1. Uma verdadeira política municipal para a população em situação de rua, com adesão à política nacional, de forma intersetorial, que extrapole a política de assistência social e inclua as outras secretarias neste esforço;
2. Política de moradia permanente como eixo organizador para impactar na superação da situação de rua e produzir possibilidades de saída das ruas com autonomia e participação dos beneficiários da política;
3. Realização de pesquisas com determinada frequência de modo a garantir o acompanhamento sistemático e histórico do número de pessoas em situação de rua na cidade;
4. As baixas temperaturas no inverno e o aumento do número de acolhimentos não podem ser tratados como uma ocasião de estratégias emergenciais. O inverno é um fato previsível, trata-se de uma característica da nossa cidade, que deve ser tratada institucionalmente como um fato sobre o qual se deve atuar de forma sistemática.

Assinam esta carta:

Movimento Nacional da População de Rua – MNPR
Instituto Nacional de Direitos Humanos da População em Situação de Rua – INRua
Instituto Lixo e Cidadania – ILIX
Movimento Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis – MNCR
Arquidiocese de Curitiba
Pastoral do Povo de Rua
Casa de Acolhida São José
Projeto Mãos Invisíveis
Conselho Regional de Serviço Social do Paraná – CRESS/PR
Conselho Regional de Psicologia do Paraná – CRP/08.

Curitiba, 20 de junho de 2018.

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